Em Tempo de Natal



 No calendário litúrgico, com exceção à celebração anual da Páscoa, para a Igreja a comemoração mais venerável do ano é o Natal do Senhor. O Natal é um tempo especial; tempo de fé, alegria e acolhimento do Filho de Deus feito Homem. É um tempo curtinho. Vai da véspera do Natal de Nosso Senhor até o primeiro domingo depois da Festa da Epifania, no começo de janeiro. Durante este período são celebradas pela Igreja as festas da Circuncisão do Senhor, da Sagrada Família, de Santa Maria Mãe de Deus, da Epifania, dos Reis Magos e do Batismo de Jesus.

Ainda sobre o Natal de Deus na terra dos homens. Cada vez que somos convidados a refletir sobre este tema  corremos o risco de repetir frases e expressões mais do que batidas e gastas. Decidimos transcrever alguns textos que podem nos levar a dizer que estamos profundamente reconhecidos com a decisão do Altíssimo de vir ter conosco. Esse momento de reflexão e de retiro pretende ser  contemplação e admiração diante de Deus que quer conversar com a terra. Tudo se concentra numa criança envolvida em panos e que precisa de todos os cuidados possíveis e imagináveis.

Se não tivesses vindo...
Súplica pela vinda do Senhor?  Alegria pela sua chegada?
 
Eu estaria morto para a eternidade
se tu não tivesses nascido no tempo.
Nunca teria eu sido libertado da carne do pecado,
se não tivesses tomado a semelhança do pecado.
Seria vítima de miséria sem fim,
se não tivesses manifestado na misericórdia.
Eu não teria recobrado a vida
se tivesses deparado com a morte.
Eu teria sucumbido, se não me tivesses socorrido.
Estaria morto se não tivesses vindo.
Santo Agostinho 


Quem nos leva à festa do Natal?
Viver em estado de advento!


             Senhor “por amor aos homens vem de novo a esta terra!” Este é o apelo que domina o tempo do Advento. Deus estaria ausente? Não, sabemos que ele se faz presente em nossa vida e em nossa história. Nós é que tomamos distância dele. Deixamos nos envolver com nossas preocupações e nos prender em nossos trabalhos. Esquecemo-nos dele.

A maioria dos textos que lemos no tempo do Advento constitui uma pedagogia viva cuja finalidade é despertar nosso coração adormecido de seu torpor espiritual.   O Senhor quer fazer de cada um de nós “vigias da aurora”, sentinelas do amor.

Estamos sempre voltando para o Senhor. Preocupados com muitos detalhes e obrigados a nos “distrair”  do essencial  não temos mais consciência que nossa vida pessoal e coletiva se inscreve no dinamismo de uma esplendorosa Aliança de amor, uma longa história de salvação.

Durante o tempo do Advento pedimos que o Senhor, ainda uma vez,   rasgue a espessura de nossas trevas,  dilate nossos horizontes acanhados e venha morar em nosso coração e em nossa terra.

Três grandes personagens serão nossos guias nesse despertar espiritual:  o profeta Isaías, o precursor Joao Batista e Maria, a  mulher da fé.

Isaías haverá de nos ajudar a enraizar nossa esperança na espera multissecular de nossos antepassados, na fé de Abraão e no êxodo de Moisés. O profeta vai reavivar em nós “as promessas messiânicas” que fizeram do povo de Israel um povo de peregrinos e que fazem ainda da Igreja do Cristo um povo de caminhantes que se orientam para a plenitude do Reino do Amor.



Isaías nos convida a nos deixar sermos  modelados pelo Criador, oleiro amoroso de sua criação que, dia após dia,  toma a argila de que somos feitos para nos dar rosto de eternidade e fazer de nossa terra a matéria de seu Reino.

João Batista nos convidará, por sua vez, a fazer com que borbulhe novamente em nós a água de nosso batismo,  gritando de uma voz forte: “Convertei-vos!  Mudai a direção de vossos pensamentos. Abri os olhos, e sede vigilantes porque, em vosso meio, está Alguém que não conheceis! Ele já se fez presente! Abri-lhe as portas de vosso coração de vossas comunidades.  Preparai-lhe um caminho para que ele possa chegar ao mais íntimo de vosso ser”.

Maria nos associará à sua própria fé disponível a fim de que possamos, nós também,  acolher as imprevisíveis visitas de Deus. Ela intercederá junto ao Senhor para que o Espírito “nos cubra com sua sombra” a fim de possamos encarnar o Amor no cotidiano e  assim dar à luz uma terra nova.

Ela, a Virgem do “sim” fará de nós homens do Advento, enraizados na fidelidade ao Senhor, capazes de perceber sua presença amorosa e atuante em nosso presente e acelerar o advento da glória do Senhor.

Michel Hubaut

Revista  Prier, dez. 1990



Uma frágil criança...
Natal; festa da criança, festa da infância, Deus se torna uma frágil criança...


Uma criança frágil, que não fala, que não tem condições de exprimir sua vontade.  Assim Deus vem  à humanidade. Não como um conquistador ou um dominador, mas através de um presente que nos é feito. A pobreza desse nascimento tem tudo a ver com sua paixão dolorida. Um Deus que se desapropria, como que a dizer que o amor que salva é sempre desapropriação.  Natal é a revelação de um Deus de humildade que não vem obrigar o homem a reconhecê-lo por medo. Quando chega à plenitude dos tempos e o momento das revelações  ficamos pasmos em ver a fragilidade de Deus criança. Talvez estranhássemos menos se o Senhor  tivesse tomado corpo num adulto de belo porte, num homem robusto. A criança, pelo contrário, é a figura da humanidade dependente que precisa ser alimentada, vestida, assistida em todos os momentos. Têm os olhos voltados para aqueles que têm a força, o ter e o poder. Necessita aprender.  Aquele que é o Verbo, a Palavra precisa aprender a falar, esse Verbo que vai de um extremo a outro da terra. Terá que aprender não somente a falar, mas a andar, a calcular, a sonhar, a ler os sinais dos tempos. Deus perde sua onipotência. Um Deus que se torna criança.



Natal: acontecimento crucial da história...

O Evangelho da Natividade não é apenas uma simpática e reconfortante história de uma Virgem Mãe e de um gracioso bebê deitado na manjedoura, uma história que comove nossos corações e nos conduz de volta, uma vez por ano, à nossa própria infância perdida. É uma proclamação solene de um acontecimento que é o ponto crucial de toda a historia:  a vinda do Messias, o rei ungido e Filho de Deus, a Palavra-feita-carne, armando sua tenda entre nós, não apenas para buscar e salvar o que estava perdido, mas para estabelecer o seu Reino, o Reino escatológico, a manifestação da plenitude dos tempos e o  remate da história.  É o anuncio de um acontecimento escatológico decisivo..  a libertação de todas as formas religiosas fragmentárias e incompletas (...).  Quando, porém, chegou a plenitude do tempo, enviou Deus o seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sob a lei, para remir os que estavam sob a Lei, a fim de que recebêssemos a adoção filial”  Gl 4, 4-5).

Thomas Merton

Assim fala Francisco, deslumbrado diante do Menino
     O mistério da piedade


Éloi Leclerc, franciscano francês, passou a vida escrevendo e refletindo  sobre Francisco e a vida franciscana.   No final do livro  “Desterro e Ternura”  (Editorial Franciscana , Braga, 1974),  ele coloca Francisco diante da cena do presépio de Greccio, falando aos irmãos sobre o mistério do nascimento do Menino. Vale a pena transcrever estas linhas do inspirado  franciscano.

            Acabara de nevar.  A noite era bela e suave, o céu de um verde quase translúcido. Ia soar a meia-noite. Luzes surgiram no flanco da montanha. Avançando lentamente na neve, desapareciam por momentos, ocultas pela folhagem, Outras luzes se lhe seguiam. Acudindo de várias direções, de cima, de baixo, todas convergiam num ponto único. A montanha agora era um mar de estrelas. Aqui e além cintilavam blocos de neve. Nem o mais leve ruído subia do vale. Nem a mais pequena  aragem agitava a floresta. No silêncio cochichavam vozes, tamancos martelavam secamente as pedras dos caminhos. Em pequenos grupos, os montanheses demandavam à gruta  para a missa da meia-noite.  Era Natal.

            Empunhando archotes e lanternas, acorriam todos, homens, mulheres e crianças. Metendo pelos barrocais do monte, rumo ao sítio onde se reconcavavam  formando abrigo, seu primeiro olhar, ao chegarem, era para o boi e o jumentinho reclinados a um canto e para a manjedoura, cheia de palha fresca.  Tudo havia sido preparado, graças aos cuidados do senhor João Velita. Francisco acolheu uns e outros com  simplicidade e cortesia. Amorosamente, ingenuamente, quisera ele este presépio ao vivo, para tornar palpável de alguma maneira, o grande acontecimento de Belém. Os animais estavam presentes  não só porque haviam de recordar o jumentinho que transportara a Virgem Mãe e aquecera o Menino, mas também porque o nascimento do Salvador, pensava ele, interessava igualmente a toda a criação. Nessa noite santa, o universo receberia o seu Senhor e a sua consagração. Era, portanto, necessário que todas as criaturas se sentissem envolvidas no grande mistério da piedade.

            À medida que iam chegando, todos se comprimiam uns contra os outros, dado que o local era exíguo. As crianças, furando as primeiras filas, estacavam de olhos esbugalhados. Tudo, naquele singular ajuntamento noturno, era para elas motivo de maravilhamento e espanto: as luzes, os animais, a abóboda de pedra amarela, escavada e boleada onde se movimentavam sobras fantásticas de pessoas e animais, e, no meio da gruta, sobre uma mesa de pedra branca, o cálice do sacrifício aberto como grande flor dourada.

            Meia noite. Uma sineta tilintou. Ia começar a missa. Celebrava frei Leão.  Francisco revestido com a dalmática  branca dos diáconos, assistia-o.  A ele coube cantar o Evangelho que anuncia ao mundo a feliz nova:

            Aconteceu que, naqueles dias, César Augusto, publicou um decreto ordenando o recenseamento de toda a terra. Esse primeiro recenseamento  foi feito quando Quirino era governador da Síria. Todos iam registrar-se, cada um em sua cidade natal. Por ser da família e da descendência de Davi, José subiu da cidade de Nazaré, na Galileia, até a cidade de Davi, chamada Belém, na Judeia, para registrar-se com Maria, sua esposa, que estava grávida. Enquanto estavam em Belém, completaram-se os dias para o parto e Maria deu à luz seu filho primogênito. Ela o enfaixou e o colocou na manjedoura, pois não havia lugar para eles na hospedaria. Naquela região havia pastores  que passavam a noite nos campos, tomando conta de seu rebanho. Um anjo do Senhor apareceu aos pastores, a glória do Senhor os envolveu em luz e eles ficaram com muito medo. O anjo, porém, disse aos pastores: “Não tenhais medo!  Eu vos anuncio uma grande alegria, que o será para todo o povo: hoje, na cidade de Davi, nasceu para vós um salvador, que é o Cristo Senhor. Isto vos servirá de sinal: encontrareis um recém-nascido  envolvido em faixas e deitado numa manjedoura”.  E, de repente,  juntou-se ao anjo uma multidão da coorte celeste. Cantavam louvores a Deus dizendo: “Glória a Deus no mais alto dos céus, e paz na terra aos homens por ele amados”  (Lc 2, 1-14).

            Francisco tomou a palavra:

            Meus amigos, ouvistes bem? - exclamou em transportes de júbilo.  Havereis de reconhecê-lo por este sinal: é um recém-nascido reclinado num presépio. O Senhor da glória, reconhecido por este sinal: uma frágil criancinha digna de comiseração como todos os recém-nascidos, reclinada sobre a palha como o mais pobre dos pobres, como o mais obscuro dos filhos dos homens! Vede a humildade de Deus. Nesta noite, o Deus da majestade fez-se irmão nosso.  Ele, o maior de todos quer ser o mais pequeno, o último.  Aproximou-se de nós sob o signo da fragilidade e da ternura.

            Foi assim que Deus nos revelou a profundeza de seu ser.  Nele não há só poder, soberania, ciência e majestade; há também inocência, infância e ternura infinita. Sim, meus amigos, Deus é infância e ternura. Por que ele é pai,  infinitamente pai.

            Os homens não sabiam até que ponto Deus é pai. Nem o podiam saber. Necessário se tornava que Deus lhes mostrasse seu Filho. Mas, ai, os homens não tardaram em esquecê-lo. Aos homens de coração duro não se lhes dá a  humanidade de Deus nem da sua ternura. Servir-lhes-ia de recriminação. Não as entenderiam. E nem se quer as veriam. Imaginam que a grandeza se estriba unicamente no poder e no domínio. Pobres homens!  A verdadeira grandeza, a única verdadeira grandeza, irmãos meus, consiste em amar o Pai com todas a veras e ser como ele.

            Neste mundo, tal grandeza encontra-se ameaçada. Desde que o reino de Deus nos foi apresentado na pessoa dum inocente, todo fragilidade, está sempre ameaçado, exposto à perseguição e à morte. Os lacaios de Herodes  já se agitam na noite da Natividade. O Reino é ameaçado dentro e fora de nós. Em cada  um de nós renasce continuamente o velho desejo animal, a vontade de dominar e de devorar, de ser o mais forte, o mais poderoso.

            Mas já não temos que temer. O Anjo do Senhor, assim no-lo pede.  Este Menino é o salvador do mundo. Salvador! Estamos salvos, irmãos. Já não estaremos mais sós, abandonados às nossas faltas, às nossas desvergonhas, aos nossos desesperos. Já nada poderá nos separar da ternura do Pai.

            Ah, certamente este mistério nós o celebramos envoltos ainda na escuridão da noite, no rude inverno da natureza e dos homens. Há ainda frio na terra. Mas esta noite, esta longa noite, bem o sabemos, é uma noite de Natal, um longo Natal que ainda perdura e no qual tomamos parte. É a noite do nascimento do homem para a vida de Deus.  E nesta noite brilha a luz:  a luz deste Menino que é o penhor  duma ternura infinita que se nos dá para sempre. Todas as vezes que um coração humano se deixa penetrar desta ternura há um pouco mais de luz na escuridão da noite. Há sempre mais luz, porque então o rosto do Menino se torna mais visível à humanidade e porque floresce no coração dos homens o paraíso da infância.

E Eloi Leclerc, depois de ter colocado esta belas palavras nos lábios de Francisco, concluiu:

            Depois desta alocução, a missa prosseguiu entre cânticos. Cada um dos presentes sentia-se penetrado duma extraordinária doçura. No momento da comunhão, quando Francisco recebeu a sagrada partícula, o senhor João Velita, maravilhado, viu despertar e sorrir entre os braços do grande amigo, um menino de estranha beleza. Todos se aperceberam que um singular mistério acabava de se cumprir: sobre a terra voltava a florir o paraíso da infância.   “Greccio, onde o servo de Deus voltou à infância...”, faz notar uma crônica  uma velha crônica. Naquela bendita noite de 1223, num recanto humilde da terra, no silêncio da natureza coberta de neve, a doce piedade de Deus abrira novamente caminho para o coração dos pobres. Enleados, voltavam a descobrir a humildade e a ternura de Deus.  Aquele presépio vivo, não era, a seus olhos, um fato simplesmente simpático. Saído do coração de um santo, num mundo cheio de violência, representava o retorno à fonte escondida da infância e da ternura, era a expressão sensível, eloquente, duma aproximação de Deus  pelos caminhos do amor e da infância reencontrada.

Éloi Leclerc

Desterro e Ternura

Editorial Franciscana, Braga, p. 229-235

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