São Francisco: “E fiz Misericórdia com eles”


Partindo dos dois versículos iniciais do Testamento de São Francisco, refletiremos muito brevemente sobre a expressão “fazer misericórdia”, fazendo referências a alguns outros Escritos do Santo onde a mesma também se faz presente.

No final da vida, Francisco dita o seu Testamento iniciando-o com estas palavras:

“O Senhor concedeu a mim, Frei Francisco, começar a fazer penitência: como eu estivesse em pecados, parecia-me sobremaneira amargo ver leprosos. E o próprio Senhor me conduziu entre eles, e fiz misericórdia com eles. E afastando-me deles, aquilo que me parecia amargo se me converteu em doçura da alma e do corpo; e, depois, demorei só um pouco e saí do mundo”1.

Nessas frases iniciais, percebe-se que Francisco reconhece na experiência do “fazer misericórdia” o ponto de partida do seu processo de conversão radical ao Evangelho, de “saída do mundo”, que ele chama de “fazer penitência”. De fato, se antes, por causa do seu “estar em pecados”, ele somente conseguia fugir dos leprosos – que representavam, na sociedade medieval, a imagem viva do pecado2– agora, movido pela graça divina – “o Senhor concedeu a mim”-, ele consegue acolhê-los, beijá-los, em uma palavra, usar de misericórdia para com eles3.

Destas frases iniciais do Testamento, fica bastante evidente que, para Francisco, a misericórdia identifica-se sobretudo com uma prática, um fazer, uma experiência a ser vivenciada, e não simplesmente com uma bela teoria a ser compreendida. Uma experiência que, por sua vez, não se reduz a ações isoladas, pontuais, a obras de misericórdia que se fazem esporadicamente – para o que costumava-se usar a expressão ‘obras de misericórdia’ – mas, refere-se às motivações que impelem a pessoa a um determinado gesto”4.

Portanto, para o Poverello, o fazer misericórdia diz respeito a um modo de fazer que deve caracterizar cada ação do ser humano, sobretudo quando o mesmo é instado a corrigir o pecado alheio ou a julgar o comportamento de alguém, como no caso dos superiores, juízes e sacerdotes:

“Aquele a quem foi confiada a obediência e que é tido como maior seja o menor e servo dos outros irmãos. E faça e tenha misericórdia para com cada um dos irmãos, como gostaria que se lhe fizesse, se estivesse em caso semelhante. Não se ire contra o irmão por causa do pecado dele, mas, com toda a paciência e humildade, admoeste-o e benignamente o apoie”.

“Se alguns dos irmãos, por instigação do inimigo, pecarem mortalmente, tratando-se daqueles pecados, acerca dos quais foi ajustado entre os irmãos que se recorra somente aos ministros provinciais, devem os ditos Irmãos recorrer a eles, o mais cedo que puderem, sem demora. Os ministros, porém, se são sacerdotes, com misericórdia lhes imponham a penitência; se, porém, não são sacerdotes, façam impor por outros sacerdotes da Ordem, como, perante Deus, melhor lhes parecer. E tomem cuidado em não se encolerizar ou perturbar com o pecado de alguém, porque ira e perturbação entravam a caridade em si e em outros”.

“Aqueles que receberam o poder de julgar os outros exerçam o julgamento com misericórdia, como eles próprios gostariam de obter do Senhor misericórdia. Pois, julgamento sem misericórdia terão os que não fizerem misericórdia”5.

Dos textos citados, contata-se também que, para Francisco, o fazer misericórdia e fazer tudo com misericórdia não significam permissividade ou relativismo moral. Para ele, o pecado há de ser condenado e o pecador corrigido, mas, há de se evitar também o moralismo e o rigorismo.

Nesse sentido, é interessante a estreita relação que Francisco estabelece, numa das suas Admoestações, entre misericórdia e discernimento – misericordia et discretio -, consideradas como virtudes irmãs que devem sempre andar juntas a fim de que se afugente, de uma parte, a rigidez, e, de outra, a superfluidade6. Isso se confirma num outro escrito de Francisco, o Audite, Poverelle, endereçado às irmãs de São Damião, no qual ele lhes suplicava que tivessem discrição com as esmolas recebidas, a fim de que por um excesso de rigor penitencial, não deixassem de suprir às próprias necessidades corporais7.



Mas, sem dúvida, o exemplo maior do fazer misericórdia em Francisco o encontramos na sua célebre Carta a um Ministro que, com toda razão, pode ser considerada a “Carta Magna” da misericórdia franciscana:

A Frei N, ministro. O Senhor te abençoe! O melhor que te posso dizer com relação às dificuldades de tua alma é isto: Considera como uma graça tudo quanto dificultar o teu amor a Deus nosso Senhor, bem como as pessoas que te causam aborrecimentos, sejam irmãos ou gente de fora, mesmo que cheguem a te fazer violência. Esta seja a tua vontade e nada mais. E esta seja a tua orientação na verdadeira obediência para com Deus nosso Senhor e para comigo, porque sei com toda certeza que é esta a verdadeira obediência. Ama aos que assim contra ti procedem, não exigindo deles outra coisa senão o que o Senhor te der. E justamente nisso deves amá-los, nem mesmo desejando que eles se tornem cristãos melhores.

E isto te valha mais do que a vida em eremitério. E nisto reconhecerei que amas realmente o Senhor e a mim, servo dele e teu, se fizeres o seguinte: não haja irmão no mundo, mesmo que tenha pecado a não poder mais, que, após ver os teus olhos, se sinta talvez obrigado a sair de tua presença sem obter misericórdia se misericórdia buscou. E se não buscar misericórdia, pergunta-lhe se não na quer receber. E se depois disto ele se apresentar ainda mil vezes diante de teus olhos, ama-o mais do que a mim, procurando conquistá-lo para o Senhor. E tem sempre misericórdia de tais irmãos. E logo que puderes, leva ao conhecimento dos guardiães que decidiste agir assim8.

Como se pode constatar logo na primeira leitura da Carta, Francisco propõe ao ministro – que supostamente queria deixar o ofício por causa de dificuldades com os seus subordinados – um fazer misericórdia elevado à sua máxima potência, vale dizer, uma oferta de misericórdia ao próximo incondicional e invencível, ou seja, livre inclusive da pretensão de que o mesmo venha a se tornar um cristão melhor e à prova de toda e qualquer resistência da sua parte. Uma misericórdia que “aparece aqui como o princípio que regenera continuamente o humano, vencendo indomavelmente todas as suas resistências”9.

Uma proposta assim radical de prática de misericórdia certamente representa um desafio para a nossa mentalidade utilitarista e pragmática que condiciona também nossa experiência de fé, levando-nos a sempre realizá-la não de forma gratuita, mas, em vista de algum resultado, de alguma intensão mais ou menos confessada, ainda que boa, como a de tornar alguém um cristão ou cristã melhor.

Um fazer misericórdia assim tão incondicional e invencível só é possível, no nosso entender, se novamente voltarmos para os dois versículos iniciais do Testamento de Francisco e os tomarmos como chave de leitura da sua experiência espiritual. Como ele nos diz, o fazer misericórdia com os leprosos provocou nele uma grande transformação: “aquilo que me parecia amargo, converteu-se em doçura da alma e do corpo”.

Em outras palavras, através do abraço do leproso, Francisco é tocado pelo mistério do amor de Deus que vem ao encontro da sua própria miséria fazendo com que ele se reconheça, agora, não apenas como um grande pecador, mas, como um pecador perdoado. E assim, com o perdão de Deus no coração e nos olhos, Francisco vai capacitando-se sempre mais a olhar para o próximo com olhos novos (misericordiosos) e a fazer tudo de maneira nova (misericordiosamente). Eis a grande transformação do amargo para o doce: a transformação interior. Não é o leproso que muda: é o modo de Francisco considerá-lo que muda.

Talvez seja essa a maior provocação de Francisco para nós hoje: nossa alegria e paz interior não podem depender de que a realidade ao nosso redor mude. O decisivo será sempre o modo como nós nos colocamos dentro dela, como a percebemos, se somos capazes de, numa perspectiva de fé, considerar tudo quanto dificultar o nosso amor a Deus como graça e como possibilidade de fazermos misericórdia com todos.

Em louvor de Cristo!

NOTAS:

1. Testamento 1-2.
2. Cfr. J. Le Goff, Il meraviglioso e il quotidiano nell’Occidente medievale, Editori Laterza, Roma/Bari, 2004, 169.
3. Cfr. 1Celano 17; 2Celano 9; Legenda Maior 1,5; Legenda dos Três Companheiros 11.
4. P. Martinelli; P. Messa, Francesco d’Assisi e la misericordia, Edizioni Dehoniani, Bologna, 2015, 70.
5. Carta aos fiéis II 42-44; Regra Bulada 7; Carta aos fiéis 28-29.
6. Cfr. Admoestação 27,6.
7. Cfr. Audite, Poverelle 4.
8. Carta a um ministro, 1-12.
9. P. Martinelli; P. Messa, Francesco d’Assisi e la misericordia, 15. Tradução nossa.

Frei Fábio Cesar Gomes
Disponível em http://www.franciscanos.org.br/?p=117547

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